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então a culpa é minha?

dia desses estávamos com a maior preguiça de fazer janta quando o padroeiro dos algoritmos nos abençoou com um cupom de desconto no ifood. o único lugar onde conseguimos aplicá-lo foi no burger king. um desconto bom que me rendeu um comprimido de omeprazol horas mais tarde.


minha avó sempre dizia que comer sem paz é se envenenar. e eu lembrei muito disso enquanto me empanturrava. esperando o entregador chegar, fiquei rolando despretensiosamente o feed do instagram. horário de pico: todos os pequenos comércios locais anunciando promoções de combos de comidas, entrega grátis ou brinde. todo mundo deixando muito claro que tá lutando pra sobreviver e atravessar esse pesadelo.


minha azia começou antes mesmo de comer o lanche; já senti meu suco gástrico corroer as paredes do estômago assim que vi que o entregador estava vindo de bicicleta. pensei "que privilegiadíssima eu sou, pedindo burger king no meio da semana enquanto um cara vem de bicicleta me entregar", me esquecendo de que ter casa e comida é direito e não privilégio, assim como ficar em casa deveria ser.



5 finger hat die hand, john heartfield, 1928.

a acidez estomacal foi se agravando enquanto eu rolava o feed e ia vendo todos aqueles pequenos comerciantes sem auxílio, sem crédito e sem e.p.i fazendo de tudo pra vender naquela noite. de novo, pensei "que escrotíssima eu sou, pedindo burger king enquanto meus amigos mal conseguem pagar o aluguel do estabelecimento deles", me esquecendo de que só pedi o fast food porque o cupom de desconto falou mais alto, já que viver de freela tem dessas e você nunca sabe quando vai poder dar uma força para o comércio local e quando vai passar dias comendo macarrão alho e ódio.


eis que jantamos e a azia bateu forte. tomei um omeprazol que não aliviou a culpa; a culpa de fazer um trabalhador precarizado vir até a minha casa entregar um lanche de uma franquia bilionária que engole o comércio de todos os meus amigos, que por consequência estão tendo que se expor ao vírus pra conseguirem sobreviver.


então a culpa é minha?


se eu faço a minha parte separando um dinheirinho (quando dá) pra comprar produtos do pequeno comércio - e isso demanda MUITA organização financeira, porque às vezes simplesmente é impossível?


se eu sempre busco curtir e comentar os posts (afinal, é de graça, mas às vezes não dá nem tempo porque o padroeiro dos algoritmos não mostra o post, ou você ficou 13h na frente do computador e não quer mais olhar uma tela ao final do dia)?


então a culpa é minha?


espero que a essa altura você já tenha percebido que estamos lidando com um problema que não demanda soluções individuais.


então por que a gente ainda culpa artistas por não produzirem "conteúdo" (aliás, o que é conteúdo?) e se desdobrarem pra divulgar suas músicas?


por que a gente culpa fãs que não compram nossos produtos?


por que achamos que os culpados estão sempre entre nós?


culpa, essa coisa tão cristã, geradora-mor de remorsos, traumas e pensamentos que nos impedem de fazer uma refeição sem nos envenenarmos.


eu, particularmente, prefiro usar "responsável". percebe como quando a gente fala que alguém é responsável por algo, isso sai de uma esfera meramente pessoal e vingativa?


não sei se faz algum sentido pra quem chegou até as últimas linhas desse texto. mas pra mim faz. o que não faz sentido é achar que a gente vai sair dessa (e de qualquer outra crise, arrisco dizer) se continuar buscando soluções individuais enquanto empresas geram lucro a partir da nossa arte. não faz sentido achar que a gente tem escolha em um sistema que não nos dá escolha; ou você se expõe ao vírus ou morre de fome. ou você ganha menos de 1 centavo por play ou ninguém nunca vai saber que você existe.


precisamos de soluções coletivas que nos permitam construir uma alternativa a esse sistema. e, quando pudermos ter escolha, seremos enfim capazes de decidir o que é o melhor para nós.


por enquanto, a única escolha é lutar.


vamos?


 


esse texto foi motivado por esse comentário do heitor mayoral, na nossa live sobre uberização da música. pois bem, heitor, espero que ele chegue até você... se bem que não posso colocar uma arma na sua cabeça e fazer você ler. mas vale a tentativa.





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