uberização da música: o que é e como superá-la
Atualizado: 2 de abr. de 2021
dois mil e vinte foi um ano decisivo para artistas independentes, brasileiras e brasileiros em especial. com o desmonte das políticas e órgãos de cultura desde meados da década passada, acentuado pelo desgoverno vigente, e a disseminação do horror a termos como lei rouanet (quem não ouviu esse nome em nenhuma festa de família, fila de supermercado ou ônibus desde 2015, que atire a primeira pedra), o setor artístico se viu completamente desestabilizado e desesperado por salvação.
alguns de nós já entendemos que no capitalismo não existe solução mágica para nenhuma crise. entretanto, o sistema é esperto. ele se disfarça de amigo, abraça as suas causas, faz um cafunezinho e oferece a sua salvação. e o melhor de tudo: ele não te trata como inferior, afinal, você é capaz de chegar onde quiser. basta querer. e aí entram em cena as empresas privadas, que vão ajudar você a ir atrás dos seus sonhos e superar a crise econômica global.
para trabalhadoras e trabalhadores de diversas áreas, essa descrição se materializou na forma do uber ou do ifood. para nós, musicistas, ela veio em forma das plataformas de streaming. mais especificamente, do spotify (que é o serviço mais conhecido por aqui).
a ideia de poder receber por cada play parece maravilhosa à primeira vista porque nos dá a sensação de autonomia. pensar em assinar com gravadoras, hoje em dia, parece algo irreal e ultrapassado quando você pode simplesmente correr atrás do próprio sucesso e ser responsável por ele. mas se antes éramos monopolizados pelas grandes gravadoras, hoje em dia estamos na mão do spotify, do deezer, tidal etc. e estamos ganhando menos do que um centavo por isso.

é até um pouco difícil entender como podem existir valores menores do que um centavo de dólar. em conversão aproximada para o real, vemos que o spotify (que provavelmente é a plataforma de música mais conhecida no brasil) paga em torno de R$0,016 por play. esse é o valor bruto, sem descontar o que vai para a distribuidora. ou seja, para que a sua música se converta em salário mínimo e comida na mesa, ela tem que tocar, no mínimo, 68.750 vezes.
há um outro ponto também muito relevante acerca dessa nova forma de monopolização da indústria musical. de acordo com uma matéria publicada pela rolling stone em setembro do ano passado, 90% dos streamings vão para 1% das e dos artistas. no brasil, nós conhecemos essa prática desde 1500 como latifúndio.
após essa avalanche de casas depois da vírgula e desse abismo que separa os 90% dos streamings dos 10% que nadam para morrer na praia, a pergunta que fica é: por que isso é aceitável? e mais: o que podemos fazer para combater essa exploração?
é impossível falar em mudar as estruturas da indústria da música sem pensar em mudar as estruturas sociais alicerçadas nesta fase ultraliberal do capitalismo, no colonialismo e no patriarcado. se 2020 foi o ano em que nos entendemos enquanto reféns das plataformas e do engajamento nas redes sociais, nosso 2021 precisa ser de organização. é difícil agrupar artistas do brasil enquanto classe, visto que isso implica colocar, sob um denominador comum, desde quem cobra R$500 mil por show até quem paga para se apresentar. mas isso não pode ser um impedimento para a fundação de uma classe artística que aja como tal; e há iniciativas que podem nos mostrar o caminho. inclusive, vale lembrar dos esforços mobilizados para a criação e aprovação da lei aldir blanc no ano passado.
fora do brasil, a union of musicians and allied workers (união dos músicos e trabalhadores aliados) é uma das agentes diretas de mobilização contra a exploração promovida pelo spotify. em outubro do último ano, ela lançou a campanha justice at spotify (justiça no spotify), que atualmente conta com mais de 27 mil assinaturas, entre elas a de thurston moore, sheer mag e fugazi. a propósito, se você também quiser assiná-la, é só acessar esse link. entre as demandas da união está, pasme, o pagamento de no mínimo 1 centavo de dólar por play. esse é um tipo de reivindicação que soa absurda de tão básica – e urgente.

durante a quarentena, muitas iniciativas (advindas da necessidade, e não do espírito empreendedor) de financiamentos coletivos e esquemas de recompensa vieram à tona para sustentar toda uma cadeia de trabalhadoras e trabalhadores do setor – que, de certa forma, têm funcionado. mas isso é um paliativo. a situação só chegou a tal ponto por conta do descaso do estado com as e os profissionais. no fundo, se tivéssemos políticas públicas e incentivos eficientes, ninguém precisaria criar uma vaquinha na internet. se tivéssemos condições iguais de produzir e distribuir música, ninguém precisaria implorar por engajamento no spotify a troco de um décimo de centavo. o público é a base da e do artista; entretanto, as condições para o fazer artístico não são obrigação dele. e o maior responsável por oferecer essas condições saiu de cena há um tempo; em seu lugar, entrou a ideologia capitalista de salvação empreendedora.
diante de todas as urgências que estes tempos requerem, é de suma importância que nos entendamos enquanto classe. e que nos façamos entender como profissionais; é preciso desmantelar esse imaginário comum de que a arte é fruto de inspiração ou iluminação divina. muito pelo contrário: o fazer artístico exige tempo, estudo, dedicação. a arte não pode ficar cristalizada como um hobby das classes mais altas, como costuma-se pensar. ela precisa ser, de fato, um direito. e, da mesma maneira, as mãos e mentes que tocam, criam, enrolam cabos e controlam a mesa de som também precisam ter suas condições de trabalho garantidas para que ninguém precise se render aos grandes latifundiários digitais. estamos, provavelmente, diante do nosso maior desafio dos últimos tempos. a mobilização da e pela classe artística precisa começar agora mesmo.